A propósito de uma excomunhão.
Ives Gandra da Silva Martins Filho
Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST)
Desde que se tornou conhecida, pela divulgação na mídia, a declaração do arcebispo de Olinda e Recife, dom
José Cardoso Sobrinho, de que incorreram na pena de excomunhão os que executaram e consentiram no aborto dos
gêmeos que esperava a menina de 9 anos de Alagoinha (PE), estuprada pelo padrasto, têm faltado pedras para
atirar no referido prelado e na Igreja Católica. Chocou o Brasil a notícia da gestação da menina pernambucana.
Mas, em relação ao aborto praticado, o que mais choca é a distorção de fatos, de modo a se justificar a morte
dos gêmeos, aproveitando-se também o episódio para se condenar a Igreja Católica por sua intransigência.
Interessante notar que os mesmos que defendem ferrenhamente a separação da Igreja e do Estado, em nome do
laicismo, não admitindo que a Igreja se manifeste em defesa da vida por ocasião da discussão judicial sobre o
aborto, são aqueles que, no presente episódio, vêm prescrever o que a Igreja deve dizer ou pensar sobre seus
dogmas e doutrina, lembrando muito a incoerência voltariana do Tratado da Tolerância: devemos tolerar todos,
menos "a infame" (a Igreja Católica).
Eis os fatos, segundo os testemunhos do Conselho Tutelar de Alagoinha e do pároco da cidade: em que pese o
parecer unânime do referido conselho, contrário ao aborto, e da vontade inicialmente manifestada pelo pai e
pela mãe da menina pela preservação da vida dos netos, a pressão de uma assistente social, com a transferência
da menina para outro hospital, o aborto foi realizado, com a maior rapidez, para evitar discussões, sempre sob
o argumento, altamente discutível, de que a gestação levaria fatalmente à morte da mãe e das crianças. E qual
foi a declaração do tão criticado arcebispo? Que o crime do aborto é mais grave do que o crime do estupro,
estando os que o praticaram, e consentiram na sua realização, excomungados "ipso facto".
Eis o direito aplicável à hipótese: a) Código Penal Brasileiro - ainda que seja crime, o aborto não se pune
quando a gestação resulta de estupro (art. 128, II); b) Código de Direito Canônico da Igreja Católica - a
excomunhão "latae sententiae" é aquela na qual incorre o fiel católico pelo simples fato de praticar o aborto,
independentemente de processo e sentença expressa, em face da extrema gravidade do delito (cc. 1314, 1318 e
1398); para o fiel católico, a excomunhão significa ficar privado de receber os sacramentos (c. 1331, § 2º);
pode ser levantada se estiver arrependido e houver se confessado (cc. 1355, § 2º, 1357, § 1º, e 1358, § 1º).
Ou seja, o que dom Fernando Cardoso Sobrinho fez foi apenas esclarecer que, pelo ato que praticaram, os que
provocaram o aborto da menina de Alagoinha deixaram de participar da comunhão da Igreja Católica. Podem voltar
a ela? Claro, desde que arrependidos do gravíssimo pecado que cometeram e devidamente perdoados pelo
sacramento da confissão.
É questão de coerência. Ninguém é obrigado a pertencer à Igreja. Mas se o faz, deve estar de acordo com sua
doutrina, defendida em sua integralidade pela Igreja Católica por mais de dois milênios. Diante de tantas
contemporizaçõ
santo de nosso tempo, que não é a doutrina de Cristo que deve se adaptar às épocas históricas, mas os tempos é
que se devem abrir à luz do Evangelho.
Diante de tão triste episódio, só podemos nos solidarizar com a dor imensa da menina estuprada e obrigada a
abortar, lamentar o sacrifício de duas vidas humanas, e nos colocar ao lado de dom José Cardoso Sobrinho,
para, junto com ele, receber as pedras que ainda continuarão a ser atiradas nele e na Igreja Católica pela
intransigente defesa da vida humana.
Fonte: Correio Braziliense
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