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Retorno ao lar depois de 30 anos de guerra litúrgica.

 Dom Mark Daniel Kirby, OSB
Prior de Silverstream Priory*

Com serenidade e humildade

Algumas pessoas têm me perguntado se a minha avaliação pessoal da “reforma da reforma” de alguma forma significa que eu decidi desprezar a grande maioria dos católicos que ainda continuam a celebrar usando os ritos e os textos presentes nos atuais livros litúrgicos reformados. Nada poderia estar mais longe da minha mente e do meu coração. Estou bem ciente de que em dioceses e paróquias espalhadas pelo mundo afora um imediato reavivamento das antigas formas litúrgicas não é uma idéia realística. Eu acho que é algo que inexoravelmente irá acontecer, mas muito lentamente, na medida em que as novas gerações começarem a descobrir, ali e aqui, locais prósperos em que as celebrações Católicas são feitas no rito tradicional. É como Ratzinger uma vez disse: “a beleza está em casa” e na medida em que os mistérios da fé forem transmitidos com integridade, com serenidade e com profunda humildade, esses locais, creio eu, exercerão uma força de atração e não de coação sobre as demais paróquias e outras comunidades religiosas, fazendo com que voltem a se envolver voluntariamente com os ritos litúrgicos tradicionais da Igreja.


O Privilégio da Marginalidade 

Eu escrevo, é claro, como um monge e não como padre diocesano. Mosteiros criam raizes, florescem e dão frutos num território intermediário que começa onde a cidade secular termina e se estende para a vastidão inexplorada do deserto. O desmerecido privilégio dessa sagrada marginalidade concede aos monges o espaço e a liberdade para recuperar, preservar e transmitir elementos da tradição litúrgica que poderiam por algum tempo permanecer remotos ou inacessíveis aos vários níveis do clero que estão totalmente engajados no cuidado pastoral das almas.

Um veterano cansado finalmente volta pra casa

Depois de ter dedicado quase quarenta anos da minha vida a uma “reforma da reforma” digna; depois de ter ensinado e defendido o Novus Ordo Missae com o melhor da minha habilidade, depois de ter composto –  e até mesmo ter sido aclamado por um decano do Pontifício Instituto de Sagrada Liturgia – um inteiro antifonal monástico em modo cantochão para os textos litúrgicos franceses, depois de ter composto centenas de configurações correspondentes ao cantochão para o Próprio da Missa em vernáculo, depois de ter lutado com todas as minhas forças pela restauração dos cantos relativos aos Próprios da Missa, depois de ter litigado à exaustão por uma obediência inteligente à Institutio Generalis Missalis Romani (Instrução Geral do Missal Romano); depois de ter me jogado de corpo e alma em palestras e conferências para sacerdotes, seminaristas, religiosos e religiosas, sou obrigado a admitir que eu poderia ter melhor gastado meu tempo e minhas energias na humilde obediência à liturgia tradicional como eu a havia descoberto – e, como eu tanto amava – na alegria da minha juventude. Não digo isto com amargura, mas como a constatação resignada  de um veterano cansado que volta tardiamente pra casa depois de uma honrosa derrota nesses trinta anos de Guerra Litúrgica.

Ao mesmo tempo bons vizinhos

Eu respeito aqueles sacerdotes e leigos que continuam a acreditar na “reforma da reforma”. Eu honro a sua devoção e perseverança, mas de onde eu me encontro, a essa altura da minha vida, eu creio que eles desperdiçam sua energia desnecessariamente. A vida é curta. Eu não posso mais aconselhar os demais a dedicar os anos mais produtivos de suas vidas remendando um edifício que foi sem sombra de dúvida erguido às pressas durante uma onda de construções rápidas, com fundações inseguras, isolamento térmico de má qualidade, luminárias defeituosas e um teto cheio de goteiras. Bem ao lado, existe uma outra casa, mais antiga, formosa, solidamente construída e em bom estado de conservação. Ela pode até precisar de um pequeno ajuste aqui e outro ou ali, mas é um lugar onde qualquer um se sente em casa e sabe que é confortável pra se viver. Pois é nessa casa que eu escolhi viver os dias que me restam. Se outros optam por continuar vivendo no “improviso” ao lado, só posso desejar-lhes boa sorte, confiante que possamos continuar vivendo ao mesmo tempo como bons vizinhos, com frequentes bate-papos sobre a cerca do quintal, trocando idéias  e talvez até mesmo aprendendo alguma coisa um com o outro.

Thomas Merton

Uma das coisas que eu aprendi ao longo dos últimos quarenta anos, e isso em meio ao tédio de uma espera muito dura, é que os monges e freiras que professam uma vida contemplativa não ganharam absolutamente nada em mudar as formas, conteúdo e linguagem da Sagrada Liturgia. As mudanças litúrgicas varreram os mosteiros como um furacão deixando um lamentável rastro de destruição em seu caminho. Será que a tão aclamada renovação litúrgica nos mosteiros serviu para um acréscimo das vocações? Será que serviu pra gerar um compromisso generoso com as regras da observância monástica? Teria servido pra promover um zelo maior pela obra de Deus? Poucos mosteiros conseguiram se recuperar dessas contínuas décadas de agitação litúrgica. Até mesmo Thomas Merton, quando se viu diante dos primeiros ventos de uma iminente mudança litúrgica, advertiu para o perigo que ameaçava a vida contemplativa de clausura. Em 1964, ele escreveu a Dom Ignace Gillet, então Abade Geral dos Cisterciences de Observância Rigorosa:

“Isto é o que eu penso do Latim e do Canto Gregoriano: eles são obras primas que nos oferecem uma insubstituível experiência Cristã e monástica. Eles possuem uma força, uma energia, uma profundidade sem igual. Se formos fazer uma comparação, podemos dizer que todos os Ofícios propostos em inglês são muito pobres. Além do mais, de forma alguma é impossível fazer com que tais coisas sejam compreendidas e apreciadas. Geralmente eu consigo ser bem sucedido nisso já no noviciado, naturalmente com algumas exceções, como com aqueles que não compreendem bem o latim. Mas aqui eu devo adicionar algo bem mais sério. Como você deve saber, eu tenho muitos amigos pelo mundo afora que são artistas, poetas, autores, editores, etc. Todos eles são capazes de apreciar nosso canto e o latim. E todos eles, sem exceção, ficaram escandalizados e entristecidos quando eu disse que provavelmente daqui a 10 anos esse Ofício e essa Missa não estarão mais aqui. E isso é que é o pior; os monges não conseguem entender esse tesouro que eles mesmo possuem e jogam tudo isso fora pra ir atrás de alguma outra coisa, enquanto seculares, que na sua maioria sequer são Cristãos, são capazes de apreciar essa arte incomparável.”

Coros desnudados e vazios

As reformas litúrgicas dos anos 60 e 70 arrancaram de seu eixo a vida espiritual de muito mais que um simples monge. A abençoada monotonia do saltério, que repetida semana após semana em acentos familiares gerava um cantochão consistente e harmônico, foi substituída pela distribuição de um saltério em vernáculo com duas, três ou até mesmo quatro diferentes semanas, numa flagrante violação tanto da Regra de São Bento como das leis objetivas da antropologia. Nunca vou esquecer a angústia gerada por tentar inventar novos tons para os salmos para que esses correspondessem ao vernáculo, ao mesmo tempo em que eu tentava desesperadamente me agarrar aos cantos do “Antiphonale Monasticum” que estavam enraizados no meu coração. Memórias da liturgia tradicional persistiam durante o inverno do meu descontentamento como as lindas flores do açafrão tentando perfurar a crosta congelada que haviam colocado sobre o meu “hortus conclusus” (jardim concluído). Os “coros desnudados e vazios” de tantas abadias modernas são tristes testemunhas do sucateamento causado pela inovação litúrgica, ainda que essa tenha sido feita, como sempre, com a melhor das intenções e tendo como base uma noção deturpada de obediência cega ao que foi mal interpretado como sendo “a mente da Igreja”.

Paulo VI

Quando eu digo “deturpada”, é porque embora o Papa Paulo VI tenha vacilado em questões litúrgicas, muitas vezes tomando partido dos reformistas mais iconoclastas em algumas matérias e até mesmo autorizando inovações de caráter duvidoso, a própria Constituição Sacrosanctum Concilium, (particularmente quando lida através das lentes da Mediator Dei, como deve ser para que essa seja entendida corretamente) e alguns dos pronunciamentos pessoais do mesmo Pontífice chamam para algo bem diferente do que se tornou a ordem do dia.

Por exemplo, o Papa Paulo VI, ao endereçar a  Sacrificium Laudis aos Superiores das Ordens masculinas em agosto de 1966 não se absteve de chamá-los à obediência naquelas matérias que lhe eram particularmente importantes:

“Na atual circunstância, que língua vos parece que poderia substituir aquelas formas de piedade litúrgica que tendes usado até agora? É preciso refletir bem para que as coisas não se tornem piores após terem negado essa herança gloriosa. Porque há que se temer que o Ofício no coral seja reduzido a uma recitação disforme da qual vós mesmos sereis os primeiros a lamentar a pobreza e a monotonia. Surge também outra pergunta: os homens ansiosos por ouvir tais peças sacras, ainda entrarão em grande número em vossos templos se ali já não se encontrará mais a linguagem antiga e nativa daquelas orações, unida ao canto cheio de gravidade e beleza?


Peçamos então aos interessados que ponderem bem sobre o que pretendem abandonar e não deixem secar a fonte de onde beberam tão abundantemente até os dias de hoje. Naturalmente que o latim apresenta algumas dificuldades e talvez algumas bem consideráveis, principalmente para os noviços da vossa sagrada milícia. Mas isto, como sabeis, não é algo impossível de ser superado e vencido, sobretudo entre vós que estais mais afastados dos afazeres e distrações do mundo e que podeis vos dedicar mais facilmente ao estudo.


Além do mais, essas orações permeadas de  antiga grandeza e nobre majestade, continuam a atrair a vós os jóvens chamados à herança do Senhor. Por outro lado, aquele coro do qual é removido essa linguagem de admirável força espiritual, a qual transcende os confins das nações, e do qual é removido também essa melodia que procede do mais íntimo santuário da alma, onde reside a fé e a caridade se inflama- estamos falando do Canto Gregoriano-  tal coro se tornará como uma vela apagada que não ilumina mais nada, não atrai mais para si nem os olhos e nem as mentes dos homens.


Em qualquer caso, caríssimos filhos, os pedidos que havíamos mencionado acima dizem respeito a matérias graves que nos é impossível fazer concessões ou derrogar as normas do Concílio e as Instruções citadas acima. Portanto vos exortamos ponderar bem sobre todos os aspectos de uma questão tão complexa. Para o bem estar dos que vos circundam e pela boa estima dos que vos acompanham, não queremos permitir que  isso possa ser causa de queda para o pior, pois poderia se tornar uma fonte de não breve detrimento e certamente poderia causar mal estar e tristeza para toda a Igreja. Permita-nos então contra a vossa vontade, defender a vossa causa. A Igreja que por razão de caráter pastoral, isto é, para o bem daqueles que não sabe o latim, introduziu as línguas nacionais na Sagrada Liturgia, vos dá mandato para custodiar a tradicional dignidade, a beleza, a gravidade do Ofício do coral tanto na língua como no canto.


Obedeçam portanto, essas prescrições com coração humilde e sincero, pois não são derivadas de um amor exagerado pelo uso antigo, mas propostas pela caridade paterna que temos por vós e aconselhadas pelo zelo pelo culto divino”.

Antiga Paixão pelo que antes era amado.

Esse contundente mandato não foi recebido com obediência filial, mas pelo contrário, com indiferença e até mesmo arrogante desprezo pela maioria dos endereçados. Até hoje, depois de 48 anos, ainda existem mosteiros onde o claro mandato da “Sacrificium Laudis” é totalmente desconhecido. Da minha parte, posso dizer humildemente que já não tenho a ilusão de fazer qualquer contribuição ativa no tocante à restauração da sagrada liturgia. Eu estou, na maior parte, contente de apenas poder sentar novamente no coro, dia após dia, hora após hora, para entoar as laudes imutáveis ao Deus Imutável. A verdade é que estou cansado até a medula das campanhas sangrentas desses trinta anos de Guerra litúrgica. No entanto, há momentos que, para minha própria surpresa, a paixão pelas coisas que antes eram amadas e que foram perdidas se reacende novamente e me inflama e é o que me obriga a escrever.





Tradução: Gercione Lima, cuja gentileza agradecemos.
- grifo nosso.
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* O Priorado de Silverstream em Stamullen (http://cenacleosb.org), County Meath, Irlanda, é uma casa de monges que vivem sob a Regra de São Bento. Cada mosteiro Beneditino é uma família autônoma caracterizada por um espírito único. Sob o patrocínio de Nossa Senhora do Cenáculo, os monges do Priorado Silverstream se dedicam à celebração digna da Opus Dei nas suas formas tradicionais e à adoração perpétua do Santíssimo Sacramento do Altar em espírito de reparação. Sua vida de louvor e adoração é marcada por uma solicitude sincera pela santificação dos sacerdotes. Sem sair da clausura do mosteiro, os monges realizam vários trabalhos compatíveis com a vocação de cada um, nomeadamente, hospitalidade ao clero que necessita  de retiro espiritual e a operação de uma excelente livraria católica localizada na portaria do Priorado.

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