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OS SANTOS INCOMODAM?



Em síntese: O livro "Os Santos, pedras de escândalo" de José Miguel Cejas aponta numerosos casos de Santos que não foram compreendidos e, por isto, sofreram perseguição na qualidade de loucos, perturbadores da ordem, revolucionários... O autor lembra que o Divino Mestre foi também mal entendido e perseguido, de modo que os maus tratos infligidos aos discípulos não surpreendem o leitor.

Movido por sérias acusações levantadas contra membros do clero, José Miguel Cejas resolveu investigar a santidade, que não pode deixar de existir na Igreja. E averiguou que os Santos têm sido numerosos, mas nem sempre bem entendidos; considerados como loucos, revolucionários e desordeiros, foram perseguidos e mal tratados. Os resultados da pesquisa foram publicados no livro "Os Santos, pedras de escândalo" ([1]), do qual vão, a seguir, extraídos alguns dos tópicos mais significativos.

1. Visão de conjunto

Os Santos, pedras de escândalo... ocasiões de tropeço? Como pode ser, se são precisamente os modelos de vida que a Igreja propõe à imitação dos fiéis?

Desde que ressoou o doloroso "Crucifica-o!" da primeira Sexta-feira Santa, também os seguidores do Crucificado têm sido perseguidos e caluniados, chamados loucos e escorraçados. Sentiram-no na pele esses protótipos da amabilidade e da humildade que foram uma Santa Teresa de Ávila ou uma Santa Teresa do Menino Jesus, um São Francisco de Assis ou um São João Bosco; passaram por isso pessoas de condição humilde, como a Bem-aventurada Carolina Kózka, e personalidades de enorme projeção na Igreja e na sociedade, como um Bem-aventurado Josemaria Escrivã ou um Santo Inácio de Loyola.

As perseguições não partiam somente daqueles que se autonomeavam inimigos seus, o que seria compreensível. Afinal, nada de bom se faz neste mundo sem suscitar invejas e ressentimentos. O mais doloroso é que, muitas vezes, vinham daqueles que melhor deveriam ter compreendido e acolhido esses homens e mulheres de Deus: os familiares, a hierarquia da Igreja e até os próprios membros das instituições que tinham fundado. Mas não há nisso nada de novo: como já dizia São Paulo há dois mil anos, todos os que querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos; cf. 2Tm 3, 12.

Má-fé? Nem sempre; muitas vezes, tratava-se da "contradição dos bons", movida por gente que pensava "estar prestando um serviço a Deus". Resultado, até certo ponto inevitável, da humana fraqueza e limitação. Mas também, paradoxalmente, carinho de Deus, que nos santos quer esculpir, a golpes rijos de cinzel, a imagem acabada do seu divino Filho.

"Debaixo de todas as misérias lançadas sobre os rostos dos santos"- diz-nos o Autor-, "a sua imagem mostra-se aos nossos olhos ainda mais nobre e digna, mais amável e atrativa, e neles resplandece ainda mais o heroísmo a que chegaram na sua luta por identificar-se com Cristo. O lixo que alguns homens do seu tempo lhes jogaram foi o adubo que os levou a atingir a plenitude da vida cristã; e, paradoxalmente, faz deles um irresistível pólo de atração que arrasta para Cristo muitos homens e mulheres de todos os tempos" (4a capa).

2. Loucos

Sejam citados dois casos.

2.1. São João Bosco (1815-1888)

Nasceu numa família de camponeses do Piemonte e foi educado por sua mãe viúva. Com grande dificuldade estudou para tornar-se sacerdote. Em 1841 reuniu meninos pobres para brincar, rezar e dar-lhes alimentação; criou um pensionato para aprendizes de alfaiate, sapateiro e outras profissões. A continuidade da obra assim iniciada foi assegurada pela fundação de duas Congregações Religiosas salesianas: a dos padres e a das Irmãs.

"Comenta o Santo nas suas Memórias do Oratório, falando de si mesmo em terceira pessoa, que, em novembro de 1845, quando começou as suas primeiras escolas noturnas, 'propagaram-se falatórios muito estranhos. Uns qualificavam Dom Bosco de revolucionário, outros tomavam-no por louco ou herege. Pensavam assim; o que o Oratório faz é afastar os meninos das paróquias; por conseguinte, o pároco encontrar-se-á com a igreja vazia e não conhecerá os garotos dos quais terá de prestar contas a Deus'.

De pouco serviam as explicações de Dom Bosco, quando esclarecia aos detratores que aqueles meninos eram de fora e por isso não tinham pároco nem paróquia. A marquesa de Barolo, antes de despedi-lo do seu pequeno hospital, também aludiu à sua suposta loucura; e a murmuração chegou a tal extremo que dois teólogos amigos seus, Vicente Ponzati e Luís Nasi, levados pela caridade para com o Santo - estavam convencidos da sua doença -, tentaram encerrá-lo num manicômio.

Aquela tentativa de interná-lo no hospital psiquiátrico teve lances cômicos: 'Consegui adivinhar-lhes a manobra' - escreve Dom Bosco -, 'e, sem me dar por achado, acompanhei-os até a carruagem. Insisti em que entrassem primeiro e se sentassem. E, quando o fizeram, fechei de um golpe a porta e gritei ao cocheiro: - Depressa! A galope! Ao manicômio, onde já estão aguardando estes dois padres!" (Cejas, p. 126).

2.2. Santa Micaela Desmaislères (1809-1865)

Micaela, Vice-condessa de Jorbalán, nasceu em Madri. Embora fosse de linhagem nobre, quis dedicar sua vida ao serviço dos pobres, especialmente das mulheres de má vida da cidade. Para tanto fundou a Congregação das Adoradoras - o que Une valeu muitos mal-entendidos e calúnias. Micaela tudo enfrentou com ânimo sereno e confiante.

"Não cabia na cabeça do duque de Pinohermoso que uma mulher da nobreza espanhola, rica e abastada, pudesse dedicar-se a essas tarefas até chegar ao extremo de endividar-se economicamente e converter-se em alvo de chacota de todos os seus antigos amigos da Corte. Aquilo, na mentalidade do duque, não podia ser senão desatino, desequilíbrio, excentricidade; em suma, loucura.

Outros muitos contemporâneos seus - que depois mudaram de opinião - julgavam-na da mesma maneira. 'Você quer ficar famosa fazendo-se passar por louca', diziam-lhe as suas amigas. Havia quem pensasse que 'agia por mania' e outros que se consideravam no dever de trazê-la à realidade, como o marquês de Arenal, que disse à Fundadora, quando a visitou no mosteiro:

'É possível que a senhora tenha perdido a cabeça? Está louca? Deixe-se de sandices. A sua família e os seus amigos estão desolados'.

Nos ambientes palacianos, onde a haviam conhecido ornada das suas melhores galas, riam-se dela quando a viam aparecer - 'olhem, olhem a louca!' - com as suas alpargatas brancas e hábito de estamenha. Um diálogo entre a rainha Isabel II - que pouco depois ganharia grande afeto pela Santa - e a sua camareira põe de manifesto aquela montanha de falatórios:

- ‘A viscondessa de Jorbalán não é sua amiga?’
- 'Sim, senhora'.
- 'E como é que ficou louca?'
- 'O quê?! Senhora, ela não está louca.'
- 'Mas é o que dizem os seus parentes.'
- ‘Acontece que se dedicou a salvar mulheres de má vida, com grande desgosto dos seus irmãos e parentes, e por isso a chamam louca, mas está em seu pleno juízo e é muito boa'.

O murmúrio converteu-se logo em clamor público e com frequência se ouvia gritar pelas ruas: 'Morra a viscondessa, morra essa louca, essa perdida, que é pior que as moças que recolhe. Ela é que se deve arrepender'" (Cejas, pp. 124-125).

3. As jovens vocações

As contradições que os Santos sofreram não foram promovidas só pelos inimigos da fé, mas também, e principalmente, por pessoas chegadas a eles e familiares íntimos. Como em nossos dias, outrora muitas vezes os pais se opunham à vocação religiosa dos filhos que eles passavam a perseguir. Sejam apresentados cinco casos.

3.1. São João Crisóstomo (369-407)

Grande orador sacro, censurava os desmandos da corte imperial em Constantinopla. Pelo quê foi sendo mal visto e acabou seus dias no exílio.

'"Quando a minha mãe soube da minha resolução [de fazer-me monge] - escreveu São João Crisóstomo -, 'tomou-me pela mão, levou-me ao seu quarto e, fazendo-me sentar junto à cama onde me havia dado o ser, desatou a chorar e a dizer-me coisas mais amargas que o seu pranto'. A sua mãe, viúva, foi-lhe recordando tudo o que havia feito por ele desde o seu nascimento; e pediu-lhe, entre lágrimas, que não a abandonasse na velhice, deixando-a viúva pela segunda vez. 'Espera até o fim dos meus dias' - dizia-lhe Antusa -. e quando me tiveres entregado à terra e me tiveres colocado junto dos ossos do teu pai, poderás então dispor da tua vida [...]. Não te faltei em nada...'

Naquela ocasião, João tinha 23 anos e cedeu. Só as palavras de um amigo o levaram mais tarde a seguir a sua vocação. Se tivesse seguido o conselho materno, talvez não chegássemos a ter um São João Crisóstomo" (Cejas, pp. 104s).

3.2. São Tomás de Aquino (1225-1274)

Era o filho mais jovem do conde de Aquino. Aos dezoito anos de idade, à revelia dos pais entrou na Ordem dos Pregadores de São Domingos; deixou numerosos escritos que lhe valeram o título de "Doutor Comum - Doctor Communis". Morreu com quarenta e nove anos de idade, a caminho do concílio de Lião (França).

"Muito intransigente frente à vocação do filho foi Teodora de Teate, mãe de Tomás de Aquino, que demonstrou com atos que não era uma mulher fácil de demover quando se lhe metia uma ideia na cabeça. Pérez de Urbel retrata-a como uma 'condessa feudal, autoritária, dura e altiva'. Tinha enviado Tomás, aos cinco anos de idade, ao mosteiro de Monte Cassino, onde um parente do seu marido, Lindolfo Sinibaldi, era abade. Parece que a sua ideia era 'que o filho caçula chegasse um dia a ostentar a mitra abacial'.

Mas a tormenta estalou quando, depois de diversas peripécias que o levaram a estudar em Nápoles, Tomás decidiu, aos dezoito anos e contra a vontade da mãe, entregar-se a Deus na Ordem dos Pregadores.

Teodora era uma mulher decidida. Onde estava Tomás? Em Nápoles? Para lá se dirigiu. Mas Tomás havia ido a Roma. Foi a Roma. Quando lá chegou, disseram-lhe que tinha partido para Bolonha com o Mestre Geral, João de Wildeshausen. Enfurecida, chamou os outros filhos, Aimon, Filipe, Reinaldo e Adenolfo, que pertenciam à milícia do imperador Frederico II, e ordenou-lhes que fossem em busca do irmão, que o trouxessem preso e o encarcerassem na fortaleza familiar de Montesan-giovanni. Teodora não tinha lá um conceito muito apurado da liberdade...

Os irmãos encontraram o jovem Tomás a caminho de Bolonha, em meados de maio de 1244, perto de Aquapendente, enquanto descansava com os seus companheiros junto de um manancial. Chegaram a galope, prenderam-no, tentaram tirar-lhe o hábito e levaram-no à força, primeiro a Montesangiovanni e depois a Roccasecca, o antigo castelo familiar, onde o encarceraram. Ali, Teodora tinha tudo planejado: depois da força masculina, poria em jogo a habilidade feminina. As suas filhas Marotta e Teodora encarregar-se-iam de fazê-lo mudar de opinião, já não por meio da força, mas pela persuasão. Disseram-lhe que, caso se fizesse beneditino, poderia chegar a ser abade... Qualquer coisa, qualquer coisa antes que ser frade mendicante. Mas as palavras das irmãs mostraram-se inúteis, e o que é pior: ao ver a atitude do irmão, Marotta começou a vacilar e decidiu ingressar no mosteiro das beneditinas de Cápua.

Quase ano e meio depois, Tomás continuava inflexível. Os seus irmãos tentaram então uma solução violenta: tiraram-lhe os livros e o hábito e deixaram-no vestido com farrapos. Em vão. Decidida a lançar mão de todos os meios possíveis, a mãe mudou de tática; pensou que, já que não podia vencer a intransigência do filho nem com palavras nem pelo uso da força, conseguiria dobrá-lo servindo-se de uma mulher. Trouxeram uma prostituta e, certa noite, introduziram-na provocadoramente no quarto de Tomás. Este, assim que a viu, aproximou-se do braseiro, pegou um tição ardente e a 'senhorita' fugiu espavorida...

Por fim, Tomás não encontrou outra solução senão descer com uma corda pela janela da fortaleza e escapar... Estremecemos só de pensar o que teria resultado para a teologia e para a Igreja inteira se Teodora tivesse conseguido alcançar o seu objetivo..." (Cejas pp. 107s).

3.3. São Francisco de Assis (1182-1226)

Filho de um comerciante de tecidos de Assis, teve uma juventude alegre e descuidada. Aos vinte anos de idade, participou de fracassada expedição militar e permaneceu alguns meses preso e adoentado. Voltando a Assis, resolveu converter-se abraçando a Dama Pobreza num momento em que a Igreja gozava de grande prestígio. Ouviu uma voz que lhe dizia: "Restaura a minha Igreja em ruínas". Tomou essa ordem ao pé da letra e pôs-se a restaurar a igreja de São Damião; com os seus discípulos fundou a família franciscana que compreende três Ordens (a dos Frades Menores, a dos Conventuais e a dos Capuchinhos) além de numerosas Congregações masculinas e femininas.

"Pietro di Bernardone, um rico mercador de tecidos da Úmbria, manteve-se em atitude irredutível: não estava disposto a aturar mais as loucuras do seu filho Francisco. Estava farto de vê-lo chegar à casa meio nu por ter dado aos pobres a capa, o chapéu e a camisa; não suportava mais que vivesse numa gruta e mendigasse pelas ruas de Assis, ou que se dedicasse a comprar pedras em troca de tecidos da sua loja, para reconstruir uma igreja. Para o pai, Francisco era - como escreve Bargellini - da desonra da família. Se se tratasse de uma vocação religiosa, talvez Pietro di Bernardone não visse com maus olhos que o filho entrasse como noviço no mosteiro dos beneditinos de Subásio; depois poderia tornar-se um padre respeitado e honrado por todos. Mas assim, não! Comia numa asquerosa tigela as sobras alheias misturadas numa repugnante confusão. Era como se tivesse prazer em degradar-se".

Certo dia, Pietro di Bernardone não aguentou mais e recorreu a um método que se vem repetindo até hoje: denunciou-o; quis declará-lo incapaz e conseguiu que fosse intimado pelos magistrados da cidade. Mas Francisco não compareceu. Então o pai foi à sede episcopal e mandou-o chamar por meio do arcebispo, Guido Secundo. Dessa vez, o filho apareceu. O mercador exigiu-lhe que lhe devolvesse o dinheiro: o equivalente às pedras de construção que havia comprado com a venda dos seus tecidos!

A história é conhecida: quando o futuro Francisco de Assis escutou o pedido do pai, tirou a roupa que vestia, ficando apenas com uma faixa de cerdas à cintura, juntou todas as peças e lançou por cima um punhado de moedas..." (Cejas, pp. 109s).

3.4. São Francisco de Sales (1567-1622)

Foi Bispo de Genebra (Suíça). Tinha o propósito de reconduzir os calvinistas à Igreja. Dotado de temperamento impaciente e dominador de muitos nobres, tornou-se conhecido por sua mansidão, fruto de intenso esforço sustentado pela graça. Deixou valiosas obras de espiritualidade, como a Introdução à Vida Devota e o Tratado do Amor de Deus.

"A mãe de São Francisco de Sales, conhecedora desse tipo de reações, preferiu a habilidade feminina às lágrimas, às ameaças às denúncias. A decisão, do seu filho, de se entregar a Deus comprometia os seus planos de que fizesse um belo casamento com a filha do duque da Savóia, e ela resolveu ganhá-lo pelo coração. Durante certo tempo, graças à índole conciliadora de Francisco, que não sabia dizer 'não', pareceu-lhe que aquela tática dava resultado. Tudo foram evasivas e dilações, até que chegou o momento dos esponsais e Francisco disse um rotundo 'não', especialmente chamativo 'num filho que nunca dizia não a nada'.

'Mas quem te pôs essa ideia na cabeça?', gritava o pai. 'Uma escolha desse tipo de vida exige mais tempo do que pensas', insistia furioso. Mas, ao vê-lo tão decidido, a mãe cedeu, movida em parte pelo temor: 'É melhor permitir que este filho siga a voz de Deus' - disse ao marido -. 'Senão, vai fazer como São Bernardo de Menthon; acabará por escapar-nos...'. E deixaram-no, por fim, seguir a sua vocação'" (Cejas, p. 110).

3.5. São Luís Gonzaga (1568-1591)

Filho do marquês de Castiglione, entrou muito jovem na Companhia de Jesus, onde faleceu vítima de peste, com 23 anos de idade, sendo ainda estudante jesuíta. Sua vocação teve que enfrentar a dura resistência do pai:

"D. Ferrante Gonzaga, pai de Luís Gonzaga, opôs todas as dificuldades imagináveis à vocação do seu filho: 'O meu filho não será frade!', repetia. Fez com que o levassem a Florença para ser pajem do grão-duque Francisco de Medici, esperando que o ambiente da corte o conquistasse. Mas o jovem Luís regressou ao lar, em Castiglione, tão decidido a entregar-se a Deus como antes. O pai enviou-o então à corte do rei da Espanha, onde permaneceu três anos. Ao voltar, porém, Luís manifestou o seu propósito de ingressar na Companhia de Jesus. Tiveram lugar então cenas violentíssimas entre pai e filho, e este acabou por adoecer. D. Ferrante voltou a enviá-lo sucessivamente às cortes de Mantua, Ferrara, Parma e Turim... até que, por fim, cedeu'" (Cejas, p. 108s).

José Miguel Cejas apresenta ainda vários tipos de mal-entendidos e perseguição aos Santos: foram levados até mesmo a tribunais eclesiásticos e civis. Isto se compreende a partir da imagem utilizada por Jesus: "Vós sois o sal da terra" (Mt 5, 13); o sal deve ter um sabor diferente daquele do seu ambiente; assim também o Santo deve ter um modo de pensar e agir que não pode ser o da moda contingente; ora isto incomoda, assim como a consciência ética pode incomodar o indivíduo que envereda por maus caminhos.

Em seu Epílogo Cejas tece ainda algumas considerações que merecem ser reproduzidas.


3. Epílogo

Apesar das numerosas dificuldades que os Santos tiveram de enfrentar ao longo da vida, a verdade sempre consegue abrir passagem e o resplendor da glória de Bernini acaba por iluminar grande parte das trevas que os inimigos teceram sobre o rosto desses homens e mulheres heróicos, reflexo admirável do rosto de Deus. Grande parte: porque nem todas essas trevas se dissipam com o tempo nas pessoas de mente retorcida ou confusa.

Isso é compreensível, já que a murmuração é extraordinariamente pertinaz. Alguns caluniadores contemporâneos não recuaram nem perante os frutos seculares de serviço à Igreja prestado por algumas instituições religiosas: por exemplo, por ocasião do centenário da morte de São João Bosco, ainda houve um ou outro articulista italiano que - depois de um século! - atacou a sua vida, tão pródiga em frutos de santidade para a Igreja. Ao completarem-se cinquenta anos da morte de Santa Teresa de Lisieux, não faltou - como recorda Frutaz - quem criasse um escândalo na imprensa internacional e solicitasse uma revisão do processo.

Para que continuar? Não é o discípulo mais do que o mestre, e não se deve esquecer que, sobre o próprio Jesus Cristo, dois mil anos após a sua passagem pela terra, continuam a escrever-se livros blasfemos, a lançar-se filme denegridores e toda a espécie de ataques grosseiros.

Como até recentemente era usual que decorresse muito tempo entre a morte de um homem de Deus e o término do processo de beatificação ou canonização - muitas vezes mais de um século! -, os ataques dos contemporâneos perdiam força e não chegavam a arranhar o pedestal dos Santos. De agora em diante, porém, com as novas normas que, desde 1983, agilizaram os trâmites processuais, podemos prever que recrudesçam as polêmicas, sempre que se trate de elevar aos altares figuras contemporâneas e de grande relevância social.

Para pôr um exemplo entre muitos, não é de estranhar que os movimentos pró-abortistas se tenham sentido incomodados com a beatificação de Gianna Beretta Molla, a mãe de família que, em 1962, preferiu sacrificar a sua vida para que a sua filha pudesse nascer. A polêmica que houve não fez senão confirmar a eficácia pastoral dessa figura emblemática do respeito à vida.

Já comentamos o interesse pastoral da Igreja neste ponto: não pretende apenas evocar e exaltar figuras longínquas, mas apresentar ao homem contemporâneo modelos de santidade que tenham assumido o Evangelho em toda a sua radicalidade. E não a amedrontam as campanhas de opinião, nem as polêmicas em torno de algumas beatificações que desmentem categoricamente o ideário laicista de certa mentalidade contemporânea, nem o poder de distorção de determinados meios de comunicação. Já Pio XII o tinha deixado claro, há muitos anos, no ato de beatificação de Santo Antonio Maria Claret, quando louvava esse Santo tão "caluniado e admirado, festejado e perseguido" (pp. 146-8).


Dom Estêvão Bettencourt (OSB) -
PERGUNTE E RESPONDEREMOS 513 – março 2005
 
 

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